"Arte em Pauta": não reduza a arte ao seu nível ou falta de interesse

"Arte em Pauta"
Com Marcela Lanna / @marcelalanna
Não reduza a arte ao seu nível ou falta de interesse
Gosto muito deste exemplo. Em 1991, uma obra de arte produzida pelo artista cubano Félix González-Torres foi exposta no Art Institute of Chicago. Intitulada “Retrato de Ross em L.A.”, ela consiste numa pilha de doces embrulhados individualmente em celofane multicolorido pesando idealmente 79kg disposta no chão em um canto do museu.
Para ilustrar os tipos de expectadores, criei particularmente quatro categorias. São elas: modelete, lembrancinha, manchete e alto-falante. Vamos ver como elas visitam e interagem com esta obra em especial.
O primeiro tipo de expectador ou visitante logo que avista a obra de arte não vai nem chegar perto e já vai pensar “mas isso é uma obra de arte? Arte contemporânea é tudo doido, não entendo! Meu filho também joga bala no chão”. E vai sair ligeiro desfilando como um modelo para outra obra de arte. Na verdade, ele vai desfilar rapidamente por todo museu não se dando o tempo de curtir e entender nem o conceito central da exposição. Ele modela e desfila tão rápido quanto nas passarelas. E está ok.
A segunda categoria é o lembrancinha. Aquele que sempre quer levar uma recordação pra casa. Um catálogo, um panfleto, uma selfie, um cartão de visitas, ou até um pedaço de uma obra de arte. Para esta obra do exemplo em específico, ele vai buscar saber se pode pegar uma bala para chupar. Vai confirmar com o segurança se é permitido e, ao saber que a obra foi feita justamente para isso, ele escolherá sua cor favorita, pegará sua bala e seguirá em direção a próxima obra de arte, na qual vai fazer a mesma coisa. Passar, pegar uma lembrancinha, degustar e partir para a próxima - arte e lembrancinha. E está ok.
Já o terceiro tipo de expectador vai se deparar com a obra no chão. Vai chegar perto para ver se é uma bala de verdade. Em seguida, vai ler a plaquinha e o texto da obra para tentar entender melhor que diabos aquelas balas fazem no chão sujo. Ele e o amigo trocarão ideias e opiniões enquanto chupam as balas. De fato, eles leram a “manchete e seu subtítulo”, entenderam a proposta do artista e vão de obra em obra no museu lendo as manchetes, discutindo e, principalmente, se divertindo. E está ótimo.
O quarto e último tipo de expectador a visitar um museu é o tipo que faz uma pesquisa prévia sobre a exposição, já sabe quem é o artista, qual o conceito central da curadoria e o que a crítica está dizendo. Ao visitar, lê tudo que pode, tira foto dos textos para ler depois – o que possivelmente não vai acontecer pela quantidade de fotos que vai registrar. A visita ao museu vai demorar consideravelmente, os amigos vão esperar ele no café ou vão embora. Ele vai pegar os catálogos para ver depois com calma. E, no seu “depois com calma”, provavelmente na mesma noite, ele não somente vai contar sobre sua experiência a todos os entusiastas conhecidos, como aos seus seguidores nas redes sociais. Ele não se aguenta. Está super animado. Foi tão legal que ele precisa que contar, como que com um alto-falante, a todo mundo tudo sobre o “Retrato de Ross em L.A.”. Ele também vai criar stories e vídeos. Ou apenas vai escrever um post ou, quem sabe, uma coluna ;).

E sabe o que ele vai contar?
Félix González-Torres, morreu em 1996 por complicações relacionadas ao HIV, tinha 38 anos e já tinha se despedido, em 1991, de seu companheiro Ross Laycock, que também padeceu da mesma doença. A pilha de balas representa Ross são, com seu peso ideal, na nossa frente. A medida que as pessoas pegam as balas, a presença de Ross começa a diminuir, é uma recordação clara da devastação que é o HIV.
Nos anos anteriores, no final da década de 1980, o HIV devastava os Estados Unidos, tratava-se de um inimigo invisível que, por ignorância e preconceito, era relacionado com a homossexualidade. Artistas como González-Torres, Keith Haring, David Wojnarowicz e Peter Hujar viviam sob a ameaça da morte e deterioração do corpo. Ser um homem homossexual durante o pico da epidemia de HIV significava estar no olho do furacão.
Ao final do dia, a orientação imposta por González-Torres era que o museu reposse em quantidade de balas o peso de 79kg da obra, fazendo com que Ross “retomasse à vida saudável”. O artista insistia na sutileza da mensagem e em obras que não delatassem a real natureza da sua mensagem. O espectador não poderia rotular essas instalações como arte homossexual e isso permitiria que elas chegassem a mais espaços e que conseguissem invadir silenciosamente o panorama artístico mundial sem disparar alarmes.
Ao fazer sua obra viajar e ser exposta, também estendia sua própria realidade de um homem jovem que padece de HIV, um homem que dedica grande parte de seu trabalho à memória de Ross, seu companheiro, seu amante, e desta maneira conquistava espaço para ambos, reclamava novas vidas para Ross e possibilidades de moldar a ideia coletiva que rodeava a homossexualidade a final dos anos 80 e que, entre outras coisas reprováveis, caracterizava-a como perversa.
É impossível ver um obra de González-Torres e não sair comovido por sua acessibilidade, sua beleza aparente, sua maneira sutil de disposição diante do espectador. Isso faz com que o expectador estabeleça uma relação estética com a obra antes de vinculá-la a ideias particulares, permitindo que o entendimento seja mais amplo, sem julgamentos prévios e mais democrático. Se se trata de alguém com ideias negativas com relação à homossexualidade, se apelará a sensações puras sem despertar um ímpeto negativo e violento. Esta obra de artepode produzir mudanças mais significativas do que aquelas que nascem do conflito, porque pode tocar levemente a mente e o coração de quem vê e se dá ao trabalho de entender.
Uma pilha de balas coloridas no chão sujo de um museu nunca é uma pilha de balas coloridas no chão sujo no canto de um museu. Basta, no mínimo, você ler a “manchete”.
E aí? Se identificou com qual categoria?

